Covid-19: Consenso de conduta nas alterações digestivas e procedimentos associados

Diretrizes de conduta na pneumonia em pacientes com Covid-19 acham-se atualmente disponíveis. Entretanto, ainda não foram estabelecidas diretrizes para alterações digestivas e, nesse sentido, a Sociedade Chinesa de Gastroenterologia e o Grupo Chinês de Especialistas em Gastroenterologia introduziram e recomendam o presente consenso.

Manifestações digestivas e fisiopatologia

A doença por coronavírus (Covid-19) em geral ocorre na população de meia-idade e de mais idade (médias: 47-56 anos). Diarreia tem sido a queixa mais comum (2% a  49,5%). Outros sintomas incluem: anorexia (15,8% a 50,2%), náuseas e/ou vômitos (2% a 22,7%) e dor abdominal (0,1% a 4,4%).  A diarreia se apresentou inicialmente antes dos sintomas respiratórios em 2,9% a 6,3% dos pacientes.  Excluindo a diarreia induzida por drogas (Oseltamivir e Arbidol), o sintoma foi prevalente em 22,2% dos casos de Covid-19, muitas vezes ocorrendo dentro de um a oito dias (média: 3,3 dias) após o início da doença e durando até 14 dias.  

Na admissão hospitalar foi encontrada positividade para leucócitos ou sangue oculto nas fezes em 6,9% dos pacientes. Dano hepático com níveis elevados de alanina aminotransferase (ALT) foi encontrado em 5,3% a 28,3% dos casos. Níveis de aspartato aminotransferase (AST) em 4,2% a 35,4%) e bilirrubinas também se apresentaram elevados (10,5% a 23,2%). Em poucos casos esses níveis estavam muito elevados. Biópsias e autópsias de pacientes com Covid-19 revelaram degeneração, necrose e esfoliação dos epitélios esofágico, gástrico e intestinal. Outros achados foram: hepatomegalia, degeneração de células tronco, necrose focal com infiltração neutrofílica, congestão hepática sinusal e infiltração de linfócitos e células mononucleares na área portal.  

O mecanismo exato de dano digestivo associado à Covid-19 permanece desconhecido. A enzima conversora da angiotensina-2 foi identificada como receptor de SARS-CoV-2, lembrando que esta enzima é altamente expressa nos pulmões, esôfago proximal, colon e colangiócitos. É desse modo sugestivo que, teoricamente, os órgãos digestivos também podem ser vulneráveis aos alvos de SARS-CoV-2.

Conduta nas enfermidades gastrointestinais altas

Anorexia é comum, especialmente em pacientes em estado mais grave.  Náuseas e vômitos são em geral leves e transitórios. Esses sintomas podem ser causados por resposta gastrointestinal à infecção por SARS-CoV-2 ou pela  medicação anti-viral. Os tratamentos recomendados incluem: controle da febre, cuidados com efeitos colaterais de drogas farmacêuticas, atenção ao fígado e psicoterapia. Metoclopramida, domperidona ou antagonistas dos receptores da 5-hidroxitriptamina podem ser utilizados para náuseas e vômitos.

Diversos fatores de risco podem causar dano à mucosa gástrica em pacientes com Covid-19 grave, como a gravidade da doença, hipóxia, síndrome respiratória aguda grave, ventilação mecânica, falência de múltiplos órgãos e estresse psicológico. O uso de inibidores da bomba protônica constitui a opção preferencial para gastrites por estresse em pacientes com Covid-19 que possuem mais de um dos fatores de risco mencionados. Nutrição enteral e agentes protetores da mucosa são também agentes benéficos para a mucosa gastrointestinal.

Conduta na diarreia

A diarreia associada à Covid-19 é geralmente leve ou moderada e persiste por um curto período. Quando induzida por antivirais, geralmente se resolve espontaneamente, sem necessidade de tratamento. Quando mais frequente       (> 4 vezes/dia) ou por intolerância a drogas, deve ser tratada com ajuste da dose dos agentes antivirais, lembrando que não existe terapia específica para a diarreia causada por SARS-CoV-2, embora probióticos (Lactobacillus) tenham se mostrado efetivos no alívio da diarreia animal associada ao coronavírus. A efetividade dos probióticos na diarreia humana associada ao coronavírus é, entretanto, desconhecida.  

Diarreia associada a antibióticos ou à Clostridium difficile pode ocorrer em pacientes em estado crítico e os médicos devem estar atentos a ambas as possibilidades. 

Conduta na lesão hepática

Lesão hepática em pacientes com Covid-19 pode ser causada por inflamação sistêmica ou consequência direta do SARS-CoV-2 sobre a enzima conversora da Angiotensina-2 dos colangiócitos. Além disso, diversos fármacos empregados no tratamento de Covid-19 podem induzir a danos hepáticos, como: antivirais (lopinavir, ribavirina), analgésicos antipiréticos, antibióticos e produtos de ervas.

Em muitos casos, o dano hepático é de natureza leve (elevação de AST/ALT < 2x do valor normal). É indicada observação atenta e dinâmica, não estando indicado tratamento especial. Nos casos graves (elevação de AST/ALT >2 do valor normal) ou quando está presente dano hepático contínuo, o uso de drogas antivirais deve ser reavaliado ou mesmo suspenso. Agentes hepatoprotetores, como glutationa, polieno fosfatidilcolina e ácido glicirrízico, podem ser considerados

Conduta ambulatorial

O SARS-CoV-2 é transmitido primariamente por gotículas respiratórias ou pelo contato direto, mas o RNA viral tem sido também detectado em amostras fecais. Os fluidos gastrointestinais ou material fecal de pacientes com Covid-19 devem ser considerados contaminantes de alto risco e por isso medidas protetoras devem ser tomadas durante a prática gastroenterológica. É recomendável entrevista telefônica para aconselhamento aos pacientes antes da visita presencial à clínica.  Em regiões epidêmicas, todos os pacientes devem ser checados para a temperatura corporal, avaliação de eventuais sintomas respiratórios e questionamento sobre viagens e contatos.  Baseando-se nessas medidas preliminares de triagem, os pacientes ambulatoriais podem ser estratificados de acordo com os níveis de risco. Os casos suspeitos ou confirmados devem ser atendidos em salas isoladas ou transferidos para uma divisão de doenças infecciosas.

Procedimentos digestivos

Com o objetivo de controlar a transmissão de SARS-CoV-2 em comunidades epidêmicas, é recomendado a suspensão ou adiamento, até que o pandemia esteja sob controle,  de determinados procedimentos gastroenterológicos, como: determinação de pH esofágico, motilidade gastrointestinal, teste respiratório de hidrogênio, transplante de microbiota fecal, teste respiratório e detecção de antígeno fecal para H.pylori.

A endoscopia digestiva é considerada um procedimento de risco em função do possível contato direto ou transmissão pelo ar. É pois, recomendável cancelar ou adiar todos os procedimentos eletivos em comunidades em que a enfermidade está em curso de transmissão. As endoscopias emergenciais devem ser consideradas em casos de hemorragia digestiva maciça, remoção de corpos estranhos no tubo digestivo, colangite infecciosa e pancreatite biliar.  Nos locais onde a transmissão está ocorrendo ativamente, deve ser realizado teste de triagem para Covid-19 antes de procedimentos endoscópicos. As provas de triagem incluem: verificação da temperatura corporal, testes laboratoriais e tomografia computadorizada de tórax. Se for considerado necessário (e for disponível), devem também ser realizados: ácido nucleico para SARS-CoV-2 ou detecção de anticorpos específicos.

A insuflação por dióxido de carbono durante o procedimento endoscópico é recomendável, condicionalmente, para reduzir a distensão do trato gastrointestinal e respingos de água do gás. Essa conduta pode ser ajuda potencial para reduzir o risco de contaminação da víscera.  Pelo menor risco de contaminação, as cápsulas endoscópicas são recomendadas como opções preferenciais para pacientes com indicação endoscópica.

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Joaquim Prado P Moraes Filho

Professor Livre Docente de Gastroenterologia – Fac Med. USP

Diretor de Comunicação – FBG