SARS-CoV-2 é o agente viral responsável pela doença decorrente do coronavírus (COVID-19), pandemia que se desenvolveu em finais de 2019. Embora constitua enfermidade predominantemente respiratória, COVID-19 pode apresentar manifestações extrapulmonares incluindo gastrintestinais e hepatobiliares. Muitas dessas manifestações ocorrem na fase aguda, principalmente em pacientes com a forma grave da enfermidade, embora outras possam ocorrer mais tardiamente, algumas vezes mesmo após a recuperação da COVID-19 e, nesses casos, são consideradas dentro do espectro de sintomas de “COVID-prolongado”.
Na presente revisão, os autores da Faculdade de Medicina de Harvard e da Universidade de Yale, EUA, analisam detalhadamente as manifestações gastrintestinais e hepatobiliares da COVID-19. Inicialmente são consideradas as proporções dos achados clínicos gastrintestinais que, segundo diferentes estudos, podem variar de 17% a 53%, sendo que diferenças geográficas provavelmente explicam a eventual disparidade de achados. Os sintomas mais comuns são : anorexia, diarreia, dor abdominal, náuseas e vômitos.
A maioria dos sintomas gastrintestinais dos pacientes COVID-19 são considerados leves, embora estes eventualmente também possam ser graves. Nesse sentido, chama atenção a colite isquêmica como complicação comum e consequente da COVID-19, sendo infrequente nesses pacientes história prévia de trombose. Por outro lado, os achados patológicos descritos no fígado, costumam ocorrer como consequência direta da infecção viral sistêmica grave, mas, os casos de hepatite presumivelmente decorrentes de SARS-CoV-2 sugerem que a infecção hepática viral direta é complicação rara de COVID-19.
Em ambas possibilidades, trato gastrintestinal e fígado, sintomas persistentes após a resolução da infecção pulmonar, podem fazer parte do espectro do “COVID prolongado”.
Shih A, Misdraji J. COVID-19 : Gastrointestinal and Hepatobiliary Manifestations. Human Pathology, 2022. https://doi.org/10.1016/j.humpath 2022.07.006.
IMPACTO DA PANDEMIA COVID-19 EM PACIENTES COM DOENÇA HEPÁTICA CRÔNICA: RESULTADOS DO REGISTRO HEPÁTICO GLOBAL
A doença hepática crônica é uma das principais causas de morbidade e mortalidade mundial. Cirrose hepática e complicações correspondem atualmente à nona causa mais comum de morte global. As etiologias mais comuns de doença hepática crônica incluem : doença alcoólica, hepatite viral B e C e doença hepática gordurosa não-alcoólica.
O presente estudo, conduzido por extenso grupo de pesquisadores de diferentes paises e coordenado pelo Departamento de Medicina, Inova Fairfax Medical Campus, virginia, EUA, incluiu pacientes convidados do Registro Hepático Global (entidade classificatória de doenças hepáticas estabelecida em 2016, abrangendo 18 países de todos os continentes), entre maio de 2020 e maio de 2022. Foram analisados os impactos de COVID-19 em pacientes com doença hepática pré-existente. Durante o período de observação foram registrados 2500 pacientes de sete diferentes países (idade média±DP, 49±13 anos, 53% homens). Dentre todos que completaram o questionário de investigação, 9,3% tiveram COVID-19 e, desses pacientes, 19% foram hospitalizados, dos quais 13% necessitaram suporte de oxigênio, embora nenhum tenha necessitado ventilação mecânica. De todos os pacientes que participaram do trabalho, inclusive os não-infectados por COVID-19, 11,3% relataram que a pandemia havia de algum modo impactado em sua doença hepática, com 73% deles referindo atrasos nos cuidados médicos de seguimento. As respostas ao questionário (“Life disruption event perception“) confirmaram piora em 81% dos pacientes com história prévia de COVID-19 considerando pelo menos um setor (alimentação/nutrição, exercício, vida social, educação, situação financeira, habitação, cuidados de saúde) e em 69% daqueles sem história prévia de COVID-19. (p = 0,0001).
Os seguintes ajustes foram realizados: país de registro, etiologia, gravidade da doença hepática, idade, sexo, índice de massa corporal, diabetes, história de comorbidades psiquiátricas. Conclusões: COVID-19 se caracterizou por ser associado com baixos escores de saúde (beta= -0,71±0,14; p<0,0001). A pandemia COVID-19 resultou em substancial peso na vida diária dos pacientes com enfermidades hepáticas crônicas.
Younossi ZM etal. The impact of the COVID-19 pandemic patients with chronic liver disease: Results from the Global Liver Registry. Hepatology Communications 2022;00:1-7. DOI: 10.1002/hep4.2048.
ENFERMIDADES GASTRINTESTINAIS FUNCIONAIS PÓS COVID-19 : PREPAREM-SE PARA PÓS-PANDEMIA
Interessante e informativo Editorial com ponderações do grupo da National University Hospital e National University of Singapore, Singapura, e University of Malaya, Kuala Lumpur, Malásia, foi publicado em edição recente da revista Journal of Gastroenterology and Hepatology. A seguir os principais pontos de destaque do trabalho.
Os pacientes COVID-19 caracteristicamente se apresentam com sintomas respiratórios e febre e mais recentemente sabemos que sintomas gastrintestinais (SG) não são incomuns. Diferentes estudos têm demonstrado que de 3% a 79% dos pacientes COVID-9 desenvolvem adicionalmente SG como diarréia, dor abdominal, distensão/eructação, vômitos e hemorragia digestiva. Os pacientes com diarréia se mostraram mais prováveis de ocorrer danos de múltiplos órgãos e requerem tratamento em unidades de terapia intensiva. Tem sido cada vez mais reconhecido que um número substancial de pacientes COVID-19 desenvolvem sequelas da infecção a longo prazo, particularmente fadiga e falta de ar. Na síndrome pós COVID os SG incluem dor abdominal, náuseas,diarréia, anorexia e redução de apetite.
As alterações gastrintestinais funcionais pós-infecção (AGFPI) têm sido reconhecidas após gastroenterite bacteriana aguda, protozoária ou viral. O risco estimado de AGFPI após infecção gastrintestinal aguda é de cerca de 1 em cada 10 adultos, com fatores de risco incluindo gênero feminino, gravidade da enterite, uso de antibióticos durante a infecção e fatores psicológicos como ansiedade e depressão. COVID-19 é uma infecção primariamente respiratória com cerca de 50% dos casos desenvolvendo sintomas agudos gastrintestinais.
As enfermidades funcionais gastrintestinais consistem em perturbações da interação cérebro-intestino e podem ser de difícil conduta. Embora raramente levem a aumento da mortalidade, tem sido demonstrado o aumento da utilização dos sistemas de saúde, com índices de hospitalização semelhantes aos das enfermidades orgânicas como doença inflamatória intestinal e doença crônica hepática. Até o presente, estima-se que em termos globais 270 milhões de pessoas foram infectadas com COVID-19. Se 10% desses pacientes desenvolverem AGFPI, o aumento potencial dos cuidados de saúde com respectivo incremento econômico, assim como o impacto social desses pacientes, poderá ser imenso.
A chave para condução do potencial tsunami pós COVID-19 inclui a educação dos pacientes sobre a natureza das AGFPI minimizando investigações desnecessárias, e a garantia de baixos riscos.
Sabemos que os mecanismos etiopatogênicos, fatores de risco, e eventual predisposição genética para AGFPI permanecem parcialmente elucidados. A pandemia COVID-19 tem efetivamente sido um desastre global, mas, por outro lado, tem oferecido oportunidade para estudar e investigar os mecanismos em condições particulares como AGFPI. Pela primeira vez existe um grande grupo homogêneo de pacientes com AGFPI com etiologia similar que poderá nos prover uma oportunidade para estudar mecanismos das doenças como as AGFPI.
Ho KT et al. Post-COVID-19 functional gastrintestinal disorders: prepare for a GI aftershock. J Gastroenterol Hepatol 2022;37:413-414. Doi: 10.1111/jgh.15776.
Compilação :
Joaquim Prado P Moraes-Filho
Professor Associado de Gastroenterologia. – Fac.Med.USP
Diretor Comunicação – FBG