Aspectos Endoscópicos da Doença do Refluxo Gastroesofágico (DRGE)

Introdução

A doença do refluxo gastroesofágico (DRGE) ocorre com grande frequência na população brasileira e, também, é uma causa comum de consulta no gastroenterologista. Causada pelo “refluxo” do líquido do estômago para o esôfago, às vezes, o refluído atinge até a garganta e os pulmões, produzindo sintomas e/ou complicações.

Os sintomas alteram a qualidade de vida, podem reduzir a produtividade no trabalho e interferir no sono. Além disso, apesar de ter um curso benigno, se não for corretamente tratado, pode evoluir para graves complicações de saúde. Assim, é fundamental passar por uma avaliação médica para ter um diagnóstico e tratamento correto, evitando intercorrências.

Corpo

Estima-se que 10 a 20% da população adulta mundial tenha a doença do refluxo gastroesofágico e, pode acometer tanto homens, quanto em mulheres, em qualquer faixa de idade. 

Os sintomas mais comuns são a regurgitação alimentar (que costuma causar um gosto amargo na boca) e a queimação no peito ou “na boca do estômago” (azia). Outros sintomas são tosse crônica, engasgo, sensação de bola na garganta, dor no peito, dificuldade para engolir, mal hálito e eructações (arrotos). Estas manifestações costumam aparecer após as refeições e podem piorar quando a pessoa deita-se logo após a alimentação e com comidas específicas (ácidos, gordura, fritura, pimenta, vinho). Algumas condições podem aumentar o refluxo, como obesidade, fumo, ansiedade e depressão, presença de hérnia de hiato (deslocamento do estômago em direção ao tórax) e atraso no esvaziamento do estômago. A principal causa desta doença parece estar relacionada a uma alteração do musculo do esôfago que previne o retorno do conteúdo ácido do estomago. 

O diagnóstico da DRGE é feito com base nos sintomas, no entanto, se a pessoa tem mais de 50 anos, ou não melhora com a medicação ou tem algum sinal de alarme importante, como, engasgo, dor para engolir, anemia, perda de peso, vômitos repetidos ou sangramento, é necessário fazer uma consulta o quanto antes.

A endoscopia digestiva alta (EDA) é o principal e primeiro exame para investigar o refluxo. É um procedimento muito seguro, tem elevada precisão diagnóstica, além de ser importante para  certificar-se que não há nenhuma doença grave (por exemplo, um tumor do estômago ou do esôfago). 

As alterações que podem ocorrer na doença do refluxo são: inflamação do esôfago (esofagite) – Figura 1, estreitamento no esôfago (estenose, corresponde a cicatriz em local muito inflamado), úlcera (inflamação intensa) – Figura 2, sangramento e esôfago de Barrett – Figura 4. O esôfago de Barrett é quando acontece uma alteração na mucosa, devido a “agressão prolongada” do ácido do estomago e, neste caso o endoscopista coleta biópsias.

Figura 1: Esôfago normal (esquerda) e esofagite erosiva (direita)

A esofagite (inflamação do esôfago) é o achado mais comum nos pacientes com DRGE, entretanto, parte das pessoas com refluxo pode não ter esta alteração na endoscopia e, por isso, outros exames são necessários para o diagnóstico. 

Figura 2: Úlcera no esôfago 

O resultado da EDA e sua classificação quanto à gravidade são essenciais para guiar o tratamento e o acompanhamento. A classificação mais usada atualmente é conhecida de Los Angeles, que varia do grau A, mais leve, até o grau D, mais intenso. As pessoas com inflamação mais intensa no esôfago precisam de dose e tempo de uso maiores de remédio, além de necessitar de seguimento com novo exame de endoscopia, a fim de confirmar a cicatrização. Há situações em que podem acontecer complicações como sangramento digestivo (vômito com sangue ou sangue escurecido nas fezes). Esta é uma situação de urgência que requer avaliação em Pronto Socorro e realização de uma endoscopia, que poderá tratar o local do sangramento, controlar o quadro e salvar a vida do doente – Figura 3.

Figura 3: Sangramento por esofagite erosiva (esquerda) e tratamento com injeção de medicamento para tratamento da hemorragia (direita)

Alguns indivíduos portadores de doença do refluxo crônica, sobretudo, homens, mais velhos e de raça branca, têm risco aumentado de desenvolvimento do chamado esôfago de Barrett (citado acima) – Figura 4. Nesta condição, há indicação de tratamento prolongado com medicações antiácidas e acompanhamento com endoscopia, porque há risco de aparecimento de um tumor maligno (câncer) do esôfago nas áreas com Barrett. A vigilância com consultas e endoscopia periódica é importante, pois, pode diminuir o risco de câncer e, caso seja detectado câncer em fase inicial, pode ser tratado de forma minimamente invasiva com boas chances de cura.

Figura 4: Esôfago de Barrett 

As estenoses (estreitamentos) do esôfago podem aparecer nas pessoas que têm refluxo crônico sem tratamento adequado. Elas ocorrem por um processo de cicatrização (fibrose) que vai diminuindo o tamanho do esôfago, causando engasgo e dificuldade para se alimentar. Caso estejam presentes, durante uma endoscopia o médico poderá visualizá-las e até mesmo fazer o tratamento. É possível tratar as estenoses durante o procedimento conhecido como dilatação endoscópica, que é feito com a ajuda de balões que quando insuflados por dentro do esôfago, irão “romper” as áreas com a cicatriz e assim permitir que a descida da comida pelo esôfago ocorra normalmente – Figura 5.

Figura 5: Estenose de esôfago (esquerda) e tratamento endoscópico com balão dilatador (direita e inferior)

Nos pacientes que possuem sintomas de refluxo (regurgitação), mas, que não melhoram com o tratamento, outras doenças devem ser pesquisadas como, por exemplo, a esofagite eosinofílica – Figura 6. Esta doença acontece sobretudo em homens jovens e, pode causar engasgos (principalmente para comidas sólidas) bem como, sintomas persistentes de refluxo. A sua causa está relacionada ao contato com tipos de alimentos/alérgenos, que liberam substâncias no organismo capazes de atrair os eosinófilos (células inflamatórias) para a mucosa do esôfago e gerar inflamação e alterações no órgão. O diagnóstico da esofagite eosinofílica é feito com a endoscopia, que mostra alterações características do esôfago e biópsias que comprovam a presença de eosinófilos.

Figura 6: Esofagite eosinofílica 

Outro diagnóstico que deve ser considerado, especialmente em pessoas que estejam alteração na imunidade (por exemplo, quimioterapia para câncer, portadores do vírus da imunodeficiência humana – HIV), é o de doenças infecciosas do trato gastrointestinal. Algumas infecções afetam o esôfago e podem causar sintomas de dor para engolir ou queimação. A endoscopia pode reconhecer alterações como candidíase do esôfago (“sapinho”), herpes, e até mesmo infecções mais raras como tuberculose ou outras bactérias e vírus – Figura 7. As biópsias feitas na endoscopia podem confirmar o diagnóstico e possibilitar o tratamento adequado para cada situação.

Figura 7: Esofagite por candida sp (“sapinho”) (esquerda) e úlcera por citomegalovírus (direita)

Conclusão

Pelo fato de ser uma doença muito comum na população, muitas pessoas não fazem o tratamento e acompanhamento a longo prazo de forma correta. É importante considerar que a maioria tem a forma leve, mas, existem riscos relacionados à DRGE, sobretudo, quando não é corretamente tratada. A endoscopia é importante para confirmar o diagnóstico e avaliar se não há outra doença do esôfago. Em casos de complicação da DRGE a endoscopia auxilia no tratamento de hemorragia, estenose e no seguimento da doença, a fim de reduzir as complicações.

Referências

  1. Philip O. Katz, et al. Guidelines for the Diagnosis and Management of Gastroesophageal Reflux Disease. Am J Gastroenterol 2013; 108:308–328
  2. Danisa M. Clarre, Chritine Hachem. Gastroesophageal Reflux Disease (GERD). Science of Medicine 2018; 115:214-218
  3. Young, A., et al. GERD: A practical approach. Cleveland Clinic Journal of Medicine 2020 87:223-230
  4. Gomez Torrijos E, et al. Eosinophilic Esophagitis: Review and Update. Front. Med. 2018. 5:247
  5. ASGE guidelines. The role of endoscopy in the management of GERD. Gastrointestinal Endoscopy 2015
  6. Gyawali CP, et al. Modern diagnosis of GERD: the Lyon Consensus. Gut 2018. 0:1–12
  7. Tratado Ilustrado de Endoscopia Digestiva – SOBED. 1. Ed. – Rio de Janeiro. Thieme Revinter Publicações, 2018

Patrícia Santiago L. de Mattos
-Cláudio L. Hashimoto – Coordenador Médico do Centro de Diagnóstico em Gastroenterologia (CDG) da Divisão de Gastroenterologia e Hepatologia Clínica Hospital das Clínicas da FM USP